Como fazer cerveja sem fervura? 5 vantagens da raw beer

Fala cervejeiros e cervejeiras!

Outro dia pesquisando os fóruns cervejeiros pela intenet me deparei com um assunto super interessante sobre raw ale ou cervejas sem fervura e pesquisando mais encontrei um artigo bem esclarecedor com  dicas sobre como produzir em casa cerveja sem fervura e suas vantagens. No post de hoje trago a tradução desse artigo.

Fazendo uma NE IPA sem fervura

A forma mais básica da fabricação de cerveja é a transformação do amido em etanol. Uma visão extremamente simplista do processo cervejeiro começa quando o grão é maltado na maltaria, desbloqueando enzimas diastáticas. Os cervejeiros devem então moer o grão e fazer a brassagem, onde a combinação de água, calor e enzimas decompõe o amido em açúcares mais simples. O processo termina com a levedura fermentando esses açúcares em álcool. Maltagem, mosturação e fermentação: os principais processos de fabricação de cerveja. Isso, é claro, deixa de fora uma etapa importante no processo de fabricação de cerveja que todo cervejeiro reconhecerá imediatamente: fervura do mosto.

No entanto, a fervura do mosto não desempenha nenhum papel na conversão do amido em etanol e, historicamente, a fervura nem sempre fez parte das práticas cervejeiras em diferentes culturas. As cervejarias tradicionais em diversas regiões do mundo ainda mantêm os velhos hábitos com estilos como Sahti na Finlândia, Kornol na Noruega, Koduolu na Estônia e Kaimiskas na Lituânia, todos ainda produzidos sem fervura.

No nível mais básico, esses estilos são em grande parte feitos da mesma maneira que os estilos contemporâneos: o grão é maltado, o malte passa pela mostura e lavagem, e o mosto é então coletado e resfriado antes da fermentação com levedura (ou, em alguns casos, a fermentação é espontânea, contando com a ajuda de leveduras selvagens). São as mesmas etapas básicas que os cervejeiros modernos conhecem, porém sem a fervura. No entanto, alguns desses estilos divergem ainda mais da maioria das cervejas contemporâneas, já que a maioria evita totalmente o lúpulo e muitos são aromatizados com infusões de zimbro. Essa substituição de ingredientes e divergência no processo usado nessas cervejas exclusivas é o que muitas vezes une a cerveja sem fervura na mente de muitos, e isso as tornou uma espécie de busca entre os cervejeiros caseiros. Há, no entanto, um número crescente de cervejeiros caseiros que usam a técnica sem fervura para fazer estilos modernos de cerveja.

O grupo de fabricação de cerveja caseira No Boil Raw Beer no Facebook tem mais de 2.000 membros, muitos deles adotando o processo tradicional de fabricação de cerveja nórdica e aplicando-o aos estilos modernos. Popular entre esses cervejeiros é um dos estilos de cerveja artesanal mais onipresentes do momento: A New England IPA (NEIPA). Intrigado, recentemente assumi o desafio de aprender mais sobre esse processo e preparar minha própria NEIPA sem fervura.

Vantagens de fazer cerveja sem fervura

A primeira pergunta que muitos fazem é Por que? Porque pegar o processo sem fervura e adaptar aos estilos que não foram desenvolvidos para isso?

Eu estava interessado em cerveja sem fervura (também conhecida como raw beer) por causa do tempo. Como muitos cervejeiros caseiros, levo uma vida ocupada: tenho um trabalho das 8h às 18h, escrevo bastante como freelancer para revistas como trabalho paralelo e tenho uma família e três cachorros. Eu encaixo a fabricação de cerveja caseira sempre que posso, mas meu tempo livre é limitado. Preparar uma cerveja com grãos numa panela tribloco leva cerca de 7 a 8 horas desde a preparação até a limpeza. Geralmente tenho que  reservar a maior parte do dia ou preparar a cerveja até de madrugada. Mas com o processo sem fervura, termino toda a brassagem na metade do tempo. Dessa forma, posso preparar uma cerveja depois do jantar e ainda ir dormir em um horário razoável ou usar apenas a manhã de sábado e ainda ter a tarde para passar com minha família.

Simplificando, preparar cerveja sem fervura significa que posso fazer mais cerveja caseira e não preciso sacrificar um dia inteiro pelo hobby. Outro motivo é o custo. Nunca me preocupei em ferver o meu mosto durante uma hora, mas como o preço do gás e da electricidade aumentou dramaticamente nos últimos 18 meses (especialmente na Europa, onde vivo), a minha conta de energia elétrica triplicou e por isso, estou cada vez mais consciente do custo da minha fabricação de cerveja caseira. Cortar os 80-90 minutos que estou aquecendo o mosto não é mais uma economia de custos insignificante e também reduz significativamente a pegada de carbono da produção de bebida caseira. Então, tem economia de tempo, economia financeira e razões sustentáveis como motivos para pensar em fazer uma cerveja sem fervura, mas e as desvantagens? Embora não seja obrigatório, a fervura do mosto tem alguns propósitos. Em Brewing do autor A. Chaston Chapman (Cambridge University Press, 1912), ele cita alguns dos principais motivos para se ferver o mosto:

  • Esterização do mosto;
  • Interrupção da ação enzimática;
  • Extração de sabores e constituintes anti-bacterianos dos lúpulos;
  • Precipitação de moléculas grandes de proteína;
  • Concentração do mosto para atingir a densidade inicial desejada.

Então como antingir esses objetivos sem a fervura? Existem algumas dessas coisas que realmente não precisam acontecer? Para me ajudar a entender como podemos adaptar um processo de produção de cerveja caseira ao método sem fervura, entrei em contato com a Ghost Monkey Brewery na Carolina do Sul, que havia feito uma NEIPA comercial sem fervura chamada UNboiled (veja a receita do clone abaixo) e falei com cervejeiro-chefe Khoi Nguyen sobre como eles contornaram essas questões.

Esterilização

O malte está totalmente coberto de bactérias, leveduras selvagens e bolores. Portanto, considera-se necessário ferver o mosto após a mostura para pasteurizá-lo e remover esses micróbios. No entanto, 100 °C (212 °F) não é um número mágico; as bactérias são destruídas em temperaturas muito mais baixas. A Organização Mundial da Saúde concluiu um estudo mostrando que 99,99% de uma população bacteriana morre após exposição a 70 °C (158 °F) por um minuto1. O padrão da indústria para pasteurização de leite no Reino Unido é aquecer o leite a 71,7 °C por pelo menos 15 segundos antes de resfriá-lo rapidamente2.

Na maioria das cervejas nórdicas sem fervura, esta esterilização é feita com a transferência do mosto quase fervente para o fermentador. Khoi disse que para a UNboiled eles adicionaram lúpulo durante o whirlpool, então ele apenas garantiu que a temperatura do mosto fosse elevada a uma temperatura alta o suficiente durante essa etapa para pasteurizar o mosto naquele estágio.

Interrupção da Ação Enzimática

O motivo pelo qual fazemos a mostura é permitir que as enzimas presentes no malte quebrem as móleculas de amido em açúcares simples. Dando o tempo necessário, as enzimas irão converter a grande maioria do amido em açúcares fermentáveis. A fervura desnatura, em outras palavras, destrói essas enzimas, significando que qualquer mólecula de amido remanescente e açúcares de cadeias longas que a levedura não consegue converter irão ficar na cerveja, o que proporciona à alguns estilos corpo e sensação na boca.

Se a partir da mostura seguíssemos nosso processo normal de fermentação, sem fervura, terminaríamos com uma cerveja com final muito seco. Felizmente, as enzimas desnaturam em temperaturas muito mais baixas do que a fervura, então se você estiver fazendo uma lavagem muito quente, ou whirlpool no caso do UNboiled, você ainda desnaturará as enzimas. Assim, semelhante ao ponto anterior sobre pasteurização, as temperaturas de fervura não são necessárias para a interrupção da ação enzimática.

Extração de sabores do lúpulo

Embora ferver o lúpulo no mosto seja a maneira mais comum de extrair o sabor e o amargor do lúpulo, existem várias outras maneiras de extrair isso que a maioria dos cervejeiros caseiros já conhecem. O mais óbvio para extrair aroma e sabor é o dry hopping na maturação, mas também podemos adicionar o lúpulo no whirlpool, colocando-o no mosto quente depois de sair do mash-out e mexendo por um tempo antes de resfriar o mosto. O mosto quente a quase 71–83 °C ainda extrairá sabor e amargor, embora em um grau inferior ao da fervura. Khoi me disse que queria que o UNboiled tivesse um nível de amargor bastante alto para uma NEIPA e que a cerveja ficasse entre uma IPA da Costa Oeste e uma da Costa Leste, de modo que a adição do whirlpool seja suficiente para extrair uma quantidade razoável de amargor.

Os cervejeiros adeptos do no-boil brew ou raw brew costumam usar a técnica de hop tea que consiste em preparar um chá de lúpulo separado da bebida e, em seguida, adicionar esse chá de lúpulo extremamente amargo ao mosto no fermentador. Khoi me disse que esta técnica pode adicionar alguma adstringência e como o NEIPA é um estilo muito lupulado, ele prefere extrair o amargor necessário somente com a técnica de hopstand (lupulagem no whirlpool). Se estiver preparando um estilo com aroma de lúpulo menos pronunciado, um chá de lúpulo pode ser a melhor opção. Outra opção é o extrato líquido de lúpulo que você pode adicionar durante a fase de whirlpool ou até mesmo na maturação.

Removendo proteínas

A fervura do mosto faz com que as proteínas solúveis coagulem e decantem da solução formando o famoso trub que pode então ser filtrado. Durante a fervura, isso é conhecido como “hot break” e se manifestará como formação de espuma na parte superior do mosto. Isso ajuda a eliminar a turbidez da cerveja, o que, para a maioria dos estilos, é o desejado.

A turbidez, por outro lado, para uma NEIPA é realmente desejável. Khoi concordou comigo que é quase paradoxal montar um grist de grãos cheio de proteínas para depois fervê-lo. Parte de sua razão para preparar UNboiled foi não estar satisfeito com a turbidez que ele obteve nas cervejas anteriores. Devido a falta de fervura, a cerveja fica mais turva, por isso, na cerveja UNboiled, Khoi conseguiu reduzir os grãos ricos em proteínas para cerca de 30% e ainda obter uma turbidez fantástica e não se preocupar tanto com o mosto muito denso e difícil de filtrar.

Concentrando o mosto

A fervura cria vapor, portanto uma certa porcentagem de água do mosto é removida pela fervura e a densidade do mosto aumenta. É por isso que a leitura da densidade pré-fervura é sempre menor do que a leitura quando o mosto entra no fermentador. Portanto, se você seguir a mesma receita em um lote sem fervura e em um lote fervido, você terminará com uma gravidade mais baixa e, portanto, um ABV mais baixo do que o esperado, mas você também terá mais mosto do que cabe em seu fermentador. Das cinco razões para ferver o mosto, acho que esta é a menos preocupante, pois os cervejeiros podem simplesmente compensar isso no desenvolvimento da receita, incorporando mais grãos ou reduzindo a água de lavagem.

Dimetil Sulfeto (DMS)

Outra preocupação que tive com cervejas sem fervura foi o Dimetil Sulfeto (DMS), uma substância que causa um sabor semelhante de creme de milho ou repolho em uma cerveja acabada. O DMS é produzido a partir do precursor químico S-Metil Metionina (SMM). Khoi me garantiu que não teve tais problemas com o UNboiled. Eu conversei com Lars Garshol, autor de Técnicas históricas de fabricação de cerveja, sobre a fabricação de cerveja sem fervura antes de embarcar neste artigo e ele me disse que a questão do DMS em cervejas sem fervura é em grande parte um mito. O DMS só é formado em quantidades significativas a 85 °C; se você estiver mantendo a temperatura do seu mosto durante o whirlpool abaixo disso, isso não deverá ser um problema.

Khoi também projetou o grist de grãos para diminuir qualquer risco de DMS. O SMM é criado durante o processo de maltagem, mas uma quantidade significativa é eliminada na torra do malte – quanto maior a temperatura de queima, menor o SMM. Isso significa que o malte Pilsner, com sua temperatura de torra mais baixa, tem um risco maior de produzir DMS, enquanto os maltes claros torrados em temperatura mais alta têm um risco muito menor de caráter DMS3.

A UNboiled usa malte pale ale de 2 fileiras, mas malte como o Maris Otter também é uma ótima escolha. Usar um malte Viena ou Munique como base pode reduzir ainda mais o risco, mas talvez ficasse muito escuro para que a NEIPA permanecesse no estilo.

Referencias citadas no texto acima:

1 World Health Organization. “Boil Water,” 2015. https://apps.who.int/iris/handle/10665/155821
2 Dairy Council, Northern Ireland. “Pasteurisation.” www.dairycouncil.co.uk/who-we-are/ni-dairy/field-to-fridge/pasteurisation
3 Mallett, John. Malt: A Practical Guide from Field to Brewhouse. Brewers Publications, 2014.

 

Clone da cerveja UNBoiled da cervejaria Ghost Monkey

cerveja sem fervura UNBOILED NE IPA

19 L, receita com grãos
OG = 1.069  FG = 1.012
IBU = 57  EBC =  8  ABV = 7.1%

Essa receita usa todos os tópicos discutidos nesse artigo. Pasteurização e interrupção da ação enzimática é obtida através dos 20 minutos de whilpool a 83°C, com a temperatura abaixo da temperatura de formação de DMS. A turbidez  proporcionada pela aveia e o trigo em flocos não decanta durante a fervura. O amargor do lúpulo é obtido através de uma grande adição durante o whirlpool e suportada pelo dry hopping. Quando eu fiz essa receita, me tomoy 4 horas do meu dia e ainda salvei 1 hora de energia elétrica da fervura. Esta cerveja tem o lupulado frutado energizante de uma NEIPA com um toque amargo das tradicionais West Coast IPA e suas suaves notas de pinheiro.

Ingredientes

4.5 kg Malte Pale Ale
1.1 kg Trigo em flocos
600 g Aveia em flocos
280 g Malte Cara Dextrina ou Cara Clair
90 g Malte Melano
45 g Malte Acidificado
68 g Lúpulo Columbus (hopstand) – 20 min a 83°C
57 g Lúpulo Citra (hopstand) – 20 min a 83°C
57 g Lúpulo Galaxy (hopstand) – 20 min a 83°C
57 g Lúpulo Amarillo (hopstand) – 20 min a 83°C
34 g Lúpulo Mosaic (hopstand) – 20 min a 83°C
23 g Lúpulo Mosaic (dry hop #1)
45 g Lúpulo Amarillo (dry hop #2)
45 g Lúpulo Galaxy (dry hop #2)
Fermento AEB New-E ou Lallemand New England
Balas ou sachê de carbonatação se fizer refermentação na garrafa

Passo a Passo

Lave e sanitize todos os equipamentos cervejeiros. Como não haverá fervura, limpeza e sanitização são muito importantes.

Aqueça 19,8 L de água filtrada e faça a mostura a 67°C por 60 minutos.

Faça a recirculação e lavagem dos grãos até obter 21 L, nessa etapa, a água da lavagem deve estar a 80°C.

Em uma panela somente com o mosto sem os grãos, suba a temperatura para 83°C e faça o whirlpool adicionando os lúpulos conforme a receita, mantenha-os por 20 minutos.

Resfrie o mosto para 20°C e transfira-o para o fermentador sanitizado, cuidado para não levar o trub para o fermentador.

Fermente a 20°C, assim que a fermentação estiver vigorosa, por volta do 3° dia, acrescente a primeira carga de dry hop com um hop bag sanitizado.

Assim que terminar a fermentação (FG estabilizada), acrescente a segunda carga de dry-hop, deixe por 3 dias e então envase sua cerveja or use 2.3 vol CO2 se for fazer carbonatação forçada.

Texto escrito por Paul Crowther para edição de janeiro-fevereiro de 2024 da revista Brew Your Own, acesse em https://byo.com/article/brewing-no-boil-neipa/ e traduzido por Fernanda Puccinelli para o blog da Lamas Brew Shop.

E agora quero saber, vocês já tentaram fazer cerveja sem fervura? Me conta nos comentários.

Fernanda Puccinelli Autor

Gerente de marketing da Lamas Brew Shop. Descobriu o universo da cerveja caseira sendo cobaia das primeiras cervejas dos Lamas. Se apaixonou de vez pelas artesanais depois de se mudar para os EUA. De volta ao Brasil entrou no grupo da Manada Lamas, sendo responsável não apenas pelas ações de Marketing como também pelas curadoria do Lamas Brew Club.

Comentários

    João baptista de e

    (23 de julho de 2024 - 04:30)

    Artigo muito interessante,mais pra frente vou experimentar essa nova forma de se fazer uma cerveja caseira,sou novo no assunto

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