Que cervejeiro nunca se perguntou o por quê da maioria das cervejarias usarem garrafas âmbar? Ou levou aquela bronca por colocar a cerveja em garrafa transparente ou verde e até hoje não entendeu o motivo!? Pois bem, existe sim uma razão para não usarmos essas garrafas e essa razão se chama: Lightstruck ou, traduzindo, aroma de gambá (é isso mesmo que você leu).
Mas de onde vem ou porque acontece este off-flavor nas cervejas que usam as garrafas verdes e transparentes?
3-Metil-2-buteno-1-tiol
Se você nunca ouviu falar, o responsável pelo aroma de gambá é a molécula 3-Metil-2-buteno-1-tiol ou mais conhecida como 3-MBT. É resultado da reação do isohumulone (substância presente no lúpulo) com a irradiação solar. Com um Threshold (quantidade mínima para ser perceptível ao olfato) de apenas 4 partes por trilhão, basta uma pequena exposição a luz solar para que ela seja percebida na cerveja. Além disso, o 3-MBT é um dos aromas mais fortes que pode ser encontrados na bebida.
E como isso acontece? É um processo complicado que envolve diversas reações químicas. Vamos tentar sintetizar e facilitar o entendimento.
Primeiramente, os componentes da cerveja que são afetados são os humulones. Essa molécula é uma das responsáveis pelas características amargas que vem do lúpulo, provavelmente, você a conhece por alfa-ácido. Quando você ferve o seu mosto, umas das reações que acontecem com o seu lúpulo de amargor é que os humulones são convertidos em cis ou trans-isohumulone (essas duas moléculas juntas são conhecidas como iso-alfa-ácidos).
Mas o que os iso-alfa-ácidos tem a ver com o lightstruck?
Lightstruck
Essencialmente existem dois mecanismos potenciais para que este off-flavor ocorra, o primeiro envolve irradiação UV dos isohumulones. Neste mecanisco, a irradiação UV excita a molécula de isohumulone que passa por diversas etapas até se transformar em 3-MBT.
O segundo mecanismo ocorre com a exposição da garrafa à comprimentos de onda de 380 à 500 nm (faixa de luz azul do espectro). Estudos comprovam que essa faixa acelera as reações e produz muito mais 3-MBT do que a luz ultravioleta (< 380 nm).
Garrafas âmbar bloqueiam comprimentos da luz visível abaixo de 500 nm enquanto as garrafas verdes bloqueiam abaixo de 400 nm. Ou seja, para evitar a incidência do espectro azul, só utilizando garrafas âmbar. As garrafas transparentes não bloqueiam nenhum dos espectros de luz visível.
Como evitar
Felizmente, o aroma de gambá pode ser evitado na maioria das vezes através do uso de garrafas de cor âmbar ou ainda com o uso de latas, kegs e post-mix que bloqueiam os raios solares.
Além da barreira física mencionada acima, pode-se evitar o lightstruck usando, ao invés de lúpulo, uma substância conhecida como Tetra Hop. Essa substância nada mais é do que o resultado da hidrogenação do iso-alfa-ácidos, resultando em 3 produtos estáveis a luz, são eles: o rho-isohumulones, tetrahydroisohumulones e hexahydroisohumulones. Aqui na Lamas, trabalhamos com o tetrahydroisohumulone, ou como é conhecido: HopAlpha Tetra.
Por serem considerados estáveis na presença de luz, não ocorre a formação de Lightstruck. Desta forma, eles são utilizados em substituição aos lúpulos tradicionais em cervejas que utilizam garrafas transparente. Além disso, o Tetra Hop ajuda na formação de espuma e pode ser utilizado quando a produção de cerveja é feita em grandes altitudes – a água ferve em temperaturas menores que 100°C e não ocorre a isomerização do alfa ácido.
Importante: se for utilizar o HopAlpha Tetra a levedura não pode ter tido contato com o lúpulo (no caso de leveduras de mais de uma geração), utilize leveduras novas ou que só fermentaram cervejas com Tetra Hop.
Agora, se você quiser fazer cerveja e utilizar garrafas verdes ou transparentes mas não quer usar o Tetra Hop, façam que nem a Heineken. Evitem ao máximo a exposição de suas garras a luz: pode ver, as caixas de 600 mL da heineken são bem fechadas, os engradados sempre tem um papelão em cima e os fardinhos de long neck expõem o mínimo as garrafas.
Faça o Teste
Não faz ideia que aroma é esse que falamos no texto? Vá à um super mercado e compre duas garrafas de Heineken, de preferência do mesmo lote. Chegue em casa e coloque uma delas na geladeira e a outra no sol durante 4 horas. Gele a garrafa que ficou no sol, abra as duas ao mesmo tempo e compare o aroma.
Para nós, a que ficou no sol perde o frescor de lúpulo e fica com um aroma estranho, que nos remete à estrume de cavalo – imaginamos que seja esse o cheiro de gambá! Mas tem de tomar a cerveja gelada, conforme ela esquenta, o off-flavor evapora e você não sente mais nada.
Fez o teste? Fala para nós o que você sentiu!
Conclusão
Concluindo o nosso post de hoje, como podemos evitar o desenvolvimento de lightstruck na cerveja?
- utilização de garrafas âmbar, post-mix, barril;
- limitar a exposição da cerveja à luz
- utilização de HopAlpha Tetra
Referências
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422000000100019
aleheads.com/2011/10/03/skunked/
beersensoryscience.wordpress.com/2011/03/17/lightstruck/
Comentários
Mauro
Post muito informativo, sempre soube do efeito (por mitos e verdades envolvendo a Heineken) mas não sabia a explicação Química, bem legal!
Queria deixar duas perguntas: 1- o efeito acontece apenas quando exposto diretamente ao Sol ou a luz indireta do dia basta? ( imagino que na incidência indireta o efeito precise de exposições mais longas pra acontecer, certo?)… 2- assumindo que a luz indireta já baste pra ocorrência do efeito, isso seria uma preocupação já durante a fermentação? Com galões transparentes ou os baldes brancos por exemplo.
Redação Lamas
Muito interessante, né Mauro!? O mundo da cerveja é algo complexo e curiosíssimo, por isso muitas pessoas passam a vida estudando sobre o assunto! Sobre suas dúvidas:
1) Luz indireta do sol também tem bastante emissão de UV, lampadas tem emissão mas uma taxa bem menor.
2) Sim, é uma preocupação se você deixar em um local onde haja essa exposição à luz direta ou indireta do sol. Dentro de uma geladeira, por exemplo, não há com o que se preocupar. Fermentadores feitos com materiais brancos ou opacos bloqueiam a maioria dos raios UV, fermentadores transparentes, não.
nivaldo
post muito bom. muito informativo.
Onildo
Fernanda,
Fiquei me perguntando até que ponto pode haver influência da luz durante o período de fermentação. Você saberia me dizer se os fermentadores PP, PN ou de plástico branco impedem completamente a passagem da luz e quais comprimentos de onda eles bloqueiam?
Fernanda Puccinelli
Olá Onildo
Eles não impedem 100% a passagem de luz, mas bloqueiam a maior parte dos raios UV. O interessante é não deixar o fermentador exposto a luz solar durante a fermentação. Sobre os comprimentos de onda que eles bloqueiam, não temos essa informação. Isso é um ótimo questionamento para fazermos para o nosso fornecedor.
Abs,
Paulo Teixeira
Parabéns pela bela matéria… como sempre com assuntos de extrema importância para o mundo cervejeiro…
Diego Pereira da fontoura
Muito boa sua matéria… Explica muito bem o efeito do “Lightstruck”. Mas sinceramente, o que me atrai na Heineken é justamente o cheiro de gambá!!!
ERIK MEURER HEIN DA SILVA
Verdade Diego, eu também aprecio. Heineken, Stella (da Bélgica, essa versão da ambev ta cagada) e Becks. Infelizmente nas latas não podemos apreciar. Nas minhas cervejas eu nunca cinsegui deixar esse aroma muito presente. Por mais que utilizo garrafa verde ou transparente.
Leaf Sapphire
A Heineken é famosa justamente pelo lightstruck, infelizmente, que causa o amargo adorado por tantos, e odiado por muitos.
Porém uma IPA ou APA teria tanto ou mais amargor (IBU), que a Heineken, sem o lightstruck e, sem perder sua característica máxima.
Recomendo uma artesanal que demonstra muito bem isto, “Easy IPA” da “Roleta Russa”. Embora uma cerveja “bebível”, separa cerveja que é cerveja da cerveja que é negócio.